Os Três Aspectos do Fluxo da Vida
Gunas (em alfabeto devanágari: गुण) são termos sânscritos que significam "qualidades" ou "atributos". Na filosofia hindu, referem-se às três qualidades fundamentais que constituem a natureza tal como é e a mente que a percebe: Sattva (pureza), Rajas (atividade) e Tamas (inércia). São conceitos chave na filosofia antiga da Índia, especialmente na tradição Samkhya¹. Além disso, encontramos esses três conceitos nos Yogasutras e nos Vedas², como nos Upanishads e Bhagavad Gita.
Neste texto, propomos um paralelo menos conceitual e mais prático que integre o teor filosófico ou meramente observacional desses conceitos à realidade concreta de cada um de nós. Ou seja, de que forma esses três componentes da tradição Sânkhya encontram conexões reais à nossa personalidade a fim de propiciar explicações compreensíveis e aplicáveis à psicologia humana e, o mais importante, sendo capazes de trazer respostas para questões existenciais que estamos enfrentando.
Sabemos que os Vedas, como fonte de conhecimento primário da cultura Indiana, foram responsáveis por toda uma cosmovisão (visão ordenada no universo) que formou o imaginário Hindu. No entanto, como nós, do ocidente, não fomos educados dentro desse arcabouço cultural, como podemos aplicar esses conceitos de maneira eficaz e concreta em nossas vidas sem perder o vínculo com a realidade? Se nossa busca não for bem orientada, certamente ficaremos confusos e desordenados mentalmente.
Neste breve ensaio, trazemos uma compreensão mais acessível desses três conceitos milenares que, muitas vezes, são difíceis de entender no âmbito prático – o que é o mais relevante. Como aplicá-los à vida de forma construtiva e edificante?
Equilibrar as qualidades Sattva, Rajas e Tamas é a chave para uma jornada mais assertiva em busca de paz interior e plenitude
Sattva: Simboliza a pureza (física, mental e espiritual), a harmonia com todas as coisas, o equilíbrio trino (corpo, mente e espírito) e o conhecimento sobre a realidade. Está associada à luz, à benevolência e ao cultivo de uma vida virtuosa. É constituído por um estado mental que desdobra uma qualidade psíquica alinhada com a imortalidade da consciência – isto é, com a eternidade do espírito. É na clareza mental que essa percepção sobre a imortalidade da consciência se revela, produzindo inteligência, serenidade mental e sabedoria espiritual. Quando a qualidade de Sattva está predominante, nossa mente está em comunhão com a realidade, permitindo maior clareza de pensamentos, discernimento sobre os fenômenos naturais - no sentido contemplativo e percepção aguçada e mais profunda da realidade. Isso nos leva a uma sensação profunda de paz interior, contentamento existencial e maior compreensão da nossa espiritualidade.
Nós que nos esforçamos por uma tendência comportamental mais Sattvica tendemos a ser mais compassivos, amáveis, pacientes e estáveis emocionalmente. Buscamos conhecimento em todas as coisas, anseiamos pelo auto aperfeiçoamento e buscamos praticar a verdadeira compaixão - na forma de voluntariado ou ações altruístas (em sigilo), por exemplo.
No entanto, é importante destacar que, como os gunas são dinâmicos e estão sempre interagindo e influenciando-se mutuamente, a predominância de um sobre o outro pode variar em diferentes situações e momentos na vida de cada um de nós. Cultivar a qualidade de Sattva é uma busca constante na verdadeira espiritualidade hindu e em muitas filosofias práticas de vida e religiões de matriz indiana, pois promove um equilíbrio continuado que harmoniza as naturais oscilações da vida e favorece a evolução de cada um de nós.
Rajas: Simboliza a atividade dentro da linha do tempo, a paixão pelas coisas do mundo e o desejo por aquilo que promove o prazer. É o movimento natural da temporalidade e está relacionada com a Lei da Causa e Efeito, o Karma³. É a agitação dos impulsos humanos mais básicos e a inquietação pela busca de um propósito. É a própria dinâmica da vida que produz energia e anima a própria vida. Quando a qualidade de Rajas está predominante, nossa mente tende a ser mais ativa, agitada e ansiosa. Isso pode resultar em uma busca constante por objetivos que, quando não controlada, tende a produzir transtornos de ansiedade.
Embora Rajas possa ser uma força impulsora para a realização de tarefas e metas, em excesso, pode levar a uma sensação de inquietação, estresse e busca incessante por satisfação de viés material. Na psicologia humana, a predominância de Rajas pode ser percebida em pessoas com um forte impulso para a conquista, inovação e produtividade. Nós tendemos a ser ambiciosos, determinados e em constante movimento para atingir nossos objetivos. No entanto, essa qualidade também pode levar a um ciclo de atividade extrema, em todas as áreas, onde nós, de comportamento rajásico, podemos sentir grande dificuldade em relaxar, encontrando-nos sempre em um estado de busca por novos estímulos ou desafios.
Certamente, o comportamento rajásico favorece a conquista de metas e acelera a realização de muitos projetos. Contudo, também acelera o processo natural de envelhecimento e aquisição de doenças se não for dosado na medida certa. Então, a questão é: qual é a medida certa para cada um de nós? O que é vida suficiente dentro daquilo que nos propomos a fazer e realizar no mundo? Daí a importância de observar o conceito anterior, Sattva, no gerenciamento da boa vida que precisamos nutrir. Portanto, o treinamento constante pela manutenção do equilíbrio nas coisas da vida, observando os três gunas nessa constante retomada pela estabilidade, fará toda a diferença entre a vida que queremos e não conseguimos atingir e a vida que temos e mantemos com alegria.
Cultivar a consciência sobre a qualidade de Rajas nos ensina a reconhecer quando nossas mentes estão excessivamente agitadas, levando ao desordenamento, ou quando estamos perseguindo objetivos sem considerar o equilíbrio emocional. Buscar a estabilidade entre atividade e repouso é fundamental, como percebemos, para o correto gerenciamento da saúde física e psíquica.
Tamas: Simboliza a inércia, a escuridão, a ignorância e a letargia. Está associada à inatividade, à preguiça e ao desordenamento da beleza, da realidade e da vida. Quando a qualidade de Tamas está predominante, nossas mentes podem experimentar uma sensação de lentidão, preguiça, inatividade e confusão mental. Essa condição pode resultar em um estado de estagnação, falta de motivação e até mesmo depressão.
Tamas pode ser caracterizado por um estado psicofísico de inércia alimentado, muitas vezes, pelo medo de coisas visíveis e invisíveis, reais e irreais, onde há uma falta de energia, iniciativa e clareza de pensamento. Na psicologia humana, a predominância de Tamas pode ser vista em pessoas que lutam com a falta de motivação, apatia e desinteresse pelas atividades cotidianas. Podemos nos sentir presos em padrões de comportamento repetitivos e ter dificuldade em encontrar estímulos ou produzir energia ou vontade para nos envolvermos em atividades construtivas ou criativas. É importante ressaltar que, embora Tamas possa ser visto como um estado de inatividade, ele também pode ser necessário em certas situações para descanso, relaxamento e rejuvenescimento. No entanto, quando se torna excessivo, pode afetar negativamente a saúde psicofísica do indivíduo.
Cultivar a consciência sobre a qualidade de Tamas pode revelar quando nossa mente está em um estado de inatividade ou falta de motivação necessária ao movimento construtivo em nossas vidas. Treinar a observação e contornar mediante muito esforço e disciplina o desequilíbrio do estado tamásico é fundamental para alcançar um estado mental mais adequado às nossas próprias necessidades. Encontrar o eixo entre atividade e descanso é essencial para a promoção do bem-estar geral.
Observar, reconhecer e harmonizar os três gunas são passos essenciais para uma vida repleta de boas realizações.
Observar, nos orientar, decidir e fazer:
Uma prática observacional sobre os três gunas deve envolver a autoavaliação através do exercício da reflexão e da introversão da inteligência dos estados mentais predominantes e suas alterações. Ao reconhecer essas qualidades em nós mesmos, é possível cultivar um equilíbrio funcional e consciente.
Observação Sattvica: Reconheçamos momentos de clareza mental, serenidade e bondade. Cultivemos esses momentos por meio da meditação, leitura edificante, atos genuínos de amor ou voluntariado.
Conscientização Rajásica: Estejamos atentos à agitação mental, à busca incessante por satisfazer desejos e à ansiedade. Pratiquemos técnicas de gerenciamento de estresse, como mudança de rotas (escolhas) na vida, exercícios físicos inteligentes, organização de metas realistas e pausas para relaxamento.
Auto avaliação Tamásica: Identifiquemos momentos de letargia, falta de motivação e inatividade. Pensemos o contrário do que temos pensado. Procuremos atividades revitalizantes, estabeleçamos rotinas saudáveis, pratiquemos exercícios físicos e mantenhamo-nos envolvidos em aprendizado de coisas novas ou atividades que estimulem a inventividade e criatividade.
A prática observacional dos gunas nos permite um melhor entendimento das nossas próprias tendências mentais, permitindo ações conscientes e eficazes para direcionar o fluxo mental para um estado mais duradouro de estabilidade e contentamento existencial - Santosha.
¹ Sankhya é uma das seis escolas filosóficas clássicas da Índia, enfatizando a dualidade entre matéria e espírito, descrevendo o universo através dos gunas (qualidades) e dos Princípios (Purusha e Prakriti).
² Vedas são textos antigos e sagrados do hinduísmo, consistindo em quatro coleções principais (Rigveda, Samaveda, Yajurveda e Atharvaveda), que incluem hinos, rituais, ensinamentos filosóficos e práticas religiosas fundamentais para a tradição hindu.
³ Karma é a lei de causa e efeito, onde as ações passadas e atuais influenciam o destino e o futuro, refletindo a crença de que as ações de uma pessoa têm conseqüências no percurso da vida. O Karma não possui qualificação. Ou seja, ele não é bom e nem ruim, é apenas a resposta, o resultado de um movimento deliberado e consciente produzido pelos pensamentos, palavras e ações.